A ignorada legitimidade dos sentimentos
- craramos
- 16 de set. de 2023
- 4 min de leitura
Numa sociedade moralista, onde tudo se separa entre ‘bom’ ou ‘mal’ e tudo é interpretado como uma escolha ética a se fazer, tem-se pouco espaço para ouvir os sentimentos. Ao interpretarmos certas emoções como positivas e outras como negativas, aprendemos a reprimir sentimentos como ‘raiva’, ‘inveja’, ‘amargor’ e ‘decepção’. Sentimos culpa quando eles aparecem, principalmente se são direcionados à pessoas que amamos. Aprendemos desde pequenos que não devemos sentir certos sentimentos por certas pessoas (um exemplo comum é que seria ‘errado’ ou ‘feio’ ter raiva dos pais) e somos levados à reprimi-los. Infelizmente, isso nos faz sufocar uma grande e importante parte de nós, que mesmo sendo empurrada para o inconsciente, tende a fazer constantes esforços à voltar à consciência.
Jung, ao formular a psicologia analítica, coloca que, quando tentamos reprimir alguma característica nossa, ela se torna um fragmento solto dentro de nós. Esse conteúdo, que pode ser um sentimento, uma memória ou algo que não queremos reconhecer que somos, não fica quieto no canto onde o jogamos. Na verdade, ele começa a agir de forma espontânea e sem o nosso conhecimento. Já conhecemos pessoas que dizem nunca sentir raiva mas que já vimos falar com agressividade com alguém. Por exemplo, uma pessoa calma pode ser agressiva com uma caixa de mercado ao ver que recebeu o troco errado. A pessoa pode afirmar veementemente que não agiu por raiva, mas nós, do lado de fora, percebemos que o comportamento dela não faria sentido se ela realmente não tivesse agido por estar nervosa. O que aconteceu?
Esse exemplo demonstra como alguém pode ser tomado por um conteúdo. Quando não reconhecemos e cortamos contato com partes de nós, não conseguimos entender completamente o que nos leva a agir de uma forma ou outra. Esses conteúdos que chamo de ‘soltos’, ficam à deriva até achar um gancho na realidade, ou seja, uma oportunidade para se mostrarem. Jung postula que isso se dá pois a psique (o consciente e o inconsciente) tem a tendência de querer juntar os seus fragmentos e existir num todo legítimo e único. Assim, tudo o que fica ‘solto’, volta a aparecer numa tentativa de ser reabsorvido pelo consciente. Em outras palavras, a parte de nós que cortamos e jogamos fora, quer voltar para nós. Essa é uma tendência saudável da psique, por mais que possa ser desconfortável e dolorosa. De alguma forma, é como se uma parte de nós soubesse que não podemos ser nós mesmos e viver nossa legitimidade se não estamos inteiros.
Mas, voltando à uma das possíveis causas desse rompimento: a moralização de sentimentos. Essa idéia promove uma verdadeira guerra onde lutamos constantemente contra nós mesmos. Criamos defesas e modos de vida para não reconhecermos e não entrar em contato com esses sentimentos. O que essa estratégia não leva em conta é que essa falta ou rompimento no contato faz com que não saibamos nossa realidade. Isso, inclusive, pode fazer com que uma pessoa confunda realidade externa da interna. Por exemplo, se sentir rejeitado (realidade interna) não significa de fato que fomos rejeitados por alguém (realidade externa). Uma pessoa pode nos dizer algo que não cai bem, mas não ter tido a intenção de nos machucar. Isso não significa que nossa sensação de rejeição não seja real. Precisamos nos respeitar quanto a isso. Aceitando que nos sentimos assim, podemos começar a nos fazer perguntas. Essa emoção vem da situação ou ela nos lembra uma outra situação traumática? Como é essa sensação? Do que ela nos lembra? Sentimos isso sempre que estamos com essa pessoa?
Algumas pessoas acreditam que olhar para si mesmos ou, deus os livre, comunicar seus sentimentos ao outro, fará a relação ruir. Apesar disso ser possível, também há outra hipótese: a relação pode crescer, mudar para algo mais maduro ou mais confortável. Ao olharmos para o nosso desconforto, podemos entender da onde ele vem. Ao colocarmos nosso desconforto para fora, o importante é falarmos como nos sentimos, sem partir para a acusação. A acusação afirma que o outro tinha, sim, intenção de nos machucar. Isso é algo que várias vezes não temos como saber. Não lemos mentes. Mas podemos falar como nos sentimos. O ‘Você me rejeitou e me tratou mal’ vira ‘Não gosto quando você diz…” ou “Me sinto mal quando…”. Com isso, convidamos o outro a pensar conosco, e, aí, a falar da realidade dele. Assim, podemos repensar juntos a relação e transformar aquele laço, antes desconfortável, num lugar que cabe a ambos.
Nesse processo, podemos acabar reconhecendo algum trauma ou desconforto que é próprio nosso. Talvez nunca vamos gostar de sermos tratados de uma certa maneira. Essa informação nos trás possibilidades: podemos mostrar ao outro como queremos ser tratados. Dependendo da resposta desse outro, temos a chance de ver a relação como ela realmente é, e, assim, podemos nos protegermos das partes que nos machucam. Caso a situação continue ocorrendo, mesmo se for algo que a pessoa faz sem intenção de machucar, podemos escolher se queremos manter aquela relação. Não precisamos ser amigos ou manter contato com algo ou alguém que nos machuca, mesmo se sem querer. É verdade que nem todo mundo estará preparado para essas conversas difíceis, mas isso também nos faz conscientes da relação, suas características e que papel estamos fazendo nela.
O importante é entender que sentimentos são dados de realidade. Ter ódio de alguém, ter raiva pelo outro ter o que não se tem ou desejar uma pessoa quando não estamos disponíveis, não são, em si, atos deploráveis. Pois não são atos, são sentimentos. São verdades nossas. Ao reconhecermos essas verdades, podemos lidar com elas. Ao sermos empáticos conosco, podemos nos cuidar, nos dar chances. Nos damos a chance de nos entender e, assim, podemos ouvir nossos desejos e passar remédio em nossas dores. Nossas vidas não precisam pesar com o chicote da punição: a psicologia comportamental já provou faz mais de 50 anos que punição não ensina nem evita os comportamentos que não gostamos. Não mudamos com a punição porque não estamos entendendo de fato de onde vem aquele sentimento e o que ele quer nos dizer. Perdemos a chance de nos transformar ao nos tacharmos de ‘x’ ou ‘y’. Não estamos sendo honestos ao fazer isso, mas, sim, extremamente cruéis.
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