Entre os dilemas que qualquer ser humano acaba por experienciar é o que coloca uma pessoa entre aceitar e viver sua autenticidade mais própria e viver o que a sociedade aceita ou espera dela. Essa encruzilhada é tão importante e tão complexa que acabamos por revisitá-la durante toda uma vida. Testamos, ajustamos e criamos quem somos e como nos relacionamos até acharmos um modo confortável de ser. Aqui continuo um pouco a idéia do texto anterior, “A auto-aceitação como um antídoto à padronização”, que menciona a nossa relação com padrões universais e nossa individualidade.
Para isso, começarei falando de como nos descobrimos. Num primeiro momento, quando crianças, vamos aos poucos entrando em contato com o mundo, com as coisas e conosco. Assim, vamos construindo e descobrindo quem somos, nossos gostos, nossas idéias, etc. Juntamente com isso, somos socializados. Ou seja, entramos em contato com os outros e com o mundo, aprendemos como lidar com outras pessoas, o que fazer das nossas necessidades, o que esperam de nós, o que esperar das outras pessoas, etc. Esse processo é próprio de cada país, cada estado, cada cidade. Assim, é diferente ter crescido numa cidade pequena do Maranhão e numa cidade grande do Espírito Santo. Os padrões e modelos que são ensinados nessas regiões são diferentes. Cada bairro, até mesmo cada família, vai ter sua própria variação.
Quando crescemos, temos a oportunidade de atualizar o que aprendemos. Afinal, teremos experiências diferentes dos nossos pais, professores e amigos. Colocando conhecimentos a prova, podemos saber se concordamos com eles, se funcionam para nós. Assim, podemos selecionar os que nos fazem sentido e mantê-los. Mas, ao mesmo tempo, isso pode criar conflitos, pois, ao agirmos de forma diferente do que os outros estão acostumados, ou ao termos idéias diferentes, é possível que outras pessoas demonstrem desaprovação.
Um exemplo: Uma mãe ensina à filha que ela não pode brincar na rua. A menina aprende que a rua é um lugar perigoso e a evita. Nesse momento, vamos supor que a menina tem 5 anos de idade. Isso nos informa o porque do ensinamento: a criança é pequena e a mãe tem medo de ela se machucar brincando na rua. Se onde moram for especialmente movimentado, o risco da criança se machucar é considerável. Agora vamos supor que a menina cresça com esse conhecimento. Agora, imagine que ela tem 15 anos. Ela pode não perceber que o motivo da mãe lhe ter ensinado que a rua era perigosa vinha tanto dela ser jovem quanto da mãe temer pela sua segurança. Se ela nunca tentar comprovar o que lhe foi ensinado, ela não vai se arriscar a aprender que hoje ela tem a capacidade de andar na rua sem maiores problemas. Ela não vai saber que agora ela é mais capaz. Ou seja, sua auto-imagem ficará engessada: enquanto fazia sentido os adultos ao seu redor ver ela como frágil e menos capaz que um adulto aos 5 anos de idade, agora ela tem 15. Se a sua auto-imagem não se atualizar, ela pode manter a idéia de que é frágil e menos capaz mesmo se referindo a algo que lhe seria consideravelmente fácil de fazer, como andar de um lugar ao outro ou atravessar uma rua.
Esse processo de teste, de atualização da auto-imagem, não vem sem os seus percalços. Continuando com o exemplo: como a mãe vê sua filha? Se estamos falando de uma mãe ansiosa, ela pode temer pela segurança e o bem-estar da sua filha. O seu medo de que ela se machuque pode por acabar fazendo com que ela trate sua filha como alguém frágil, alguém que precisa de cuidados e que não pode tomar decisões sozinha. Esse tipo de tratamento não precisa ser falado. A mãe não precisa dizer ‘filha, você é frágil’, pois ela age dessa forma. Ao agir assim, ela está mandando uma mensagem. Como seres humanos, somos seres que conseguem captar mensagens que não precisam ser ditas, não precisam ser conscientes. É por isso que ter filhos é tão desafiador: eles respondem ao que fazemos mesmo quando não sabemos ou não reconhecemos que estamos fazendo algo. Nosso inconsciente tem essa capacidade. Até porque isso nos torna hábeis a responder a como somos tratados. Porém, voltarei a idéia principal do texto e me aprofundarei nesse tema num texto futuro.
Continuando: o que aconteceria se a filha dessa mãe colocar à prova o que lhe foi ensinado? Se ela perceber que é mais capaz do que lhe disseram, ela vai começar a agir diferente. Vai fazer mais das coisas que antes lhe diziam que era perigoso fazer. Isso pode ser um ponto favorável para a sua auto-estima. Afinal, mesmo se ela tentar algo e não conseguir, aprenderá os seus limites e consequentemente, quem ela é. Mas junto com isso, a mãe pode ficar mais ansiosa, pois vê sua filha fazendo o que ela, mãe, ensinou a não fazer. A mãe pode acabar não atualizando a imagem que tem da filha e continuar tratando esta como se tivesse 5 anos, mesmo hoje ela tendo 15, 25, ou 45.
Nesse caso que descrevi, usei a mãe como um exemplo dos outros e da sociedade, e a filha como uma pessoa que está se descobrindo. Falei de uma mãe que tem medo pela segurança da filha, mas poderia estar falando de alguém que, por exemplo, acha que mulheres não deveriam trabalhar, ou seja, um conceito antigo o qual não se mostra mais coerente com a sociedade atual. O importante é que a mãe, ou a pessoa preconceituosa, tem seus motivos para agir dessa forma, mas ela pode acabar jogando no outro (filha) algo que não é dela. Essa mãe do exemplo tem uma ansiedade legítima, mas não cuida de seus sentimentos pois não está vendo aquilo como algo seu; ela entende que é a filha que tem que voltar a agir como antes.
Enquanto isso, a filha fica no meio: continuar se descobrindo mas desagradando a mãe (o que pode trazer brigas e desavenças à relação) ou acalmar a mãe voltando a agir como antes? Volto a salientar: a ansiedade da mãe não é responsabilidade da filha. A mãe não vê, mas tem medos, conceitos, angústias que não está lidando e está jogando para fora. A filha não tem como cuidar dos sentimentos da mãe, pois os responsáveis para lidar com os nossos sentimentos somos nós mesmos. Pode ser difícil para a mãe reconhecer o que são sentimentos dela e o que é a filha agindo de forma perigosa, mas é possível se ela, mãe, procurar se entender.
Mas e quanto a filha? E quanto a nós? A escolha entre nos conhecermos e mantermos relações é muito complicada e pessoal. Existem pessoas que entendem que não podem mostram uma parte de quem são pois podem perder seu emprego. Pessoas LGBTQPIA+ podem ser expulsas de casa, quando não ocorre violência física ou estupro corretivo. Cada um sabe os ovos que estão pisando.
Aí, podemos falar sobre nosso direito de termos segredos. A filha pode não conseguir falar com a mãe, mas a mãe não precisa saber tudo o que ela faz ou tudo pelo que ela se interessa. A filha tem o direito de escolher manter relações com a mãe, mesmo se a filha tiver 40 anos e a mãe ainda temer por ela. Mas a filha pode manter uma distância não exatamente física, mas emocional. Em outras palavras: ela pode saber quem ela é, uma pessoa adulta e capaz, e, assim, pode entender que não precisa que a mãe veja ela da mesma forma; que a mãe pode mesmo ser incapaz disso. Mas isso, por mais doloroso que possa ser, não impede que seja verdade que sua filha seja, sim, capaz.
A questão indivíduo x sociedade pode colocar muitos obstáculos para uma pessoa. Um problema importante a se pensar é no caso de a filha concordar com a visão que a mãe tem dela e viver a vida se entendendo como frágil e incapaz. Quando a padronização sufoca quem somos, um sofrimento é instalado. Não vivemos bem quando somos alienados de nós mesmos, sendo essa uma das possíveis causas quando alguém tem uma crise. Crise, seja ela de ansiedade, ‘dos nervos’ ou o que for, é uma quebra. A quebra do modo antigo de ser pois este não nos contém mais. Por vezes, a crise é comparada a um breque de mão que é acionado quando uma vã está correndo para o precipício. Ela dói, ela encarreta perdas. Em algumas ocasiões, pode até mesmo ser um pedido de socorro. Mas, ao quebrar com o modo de vida do indivíduo, ao forçá-lo à parar, se abre uma oportunidade de mudança, de o indivíduo olhar para si, para suas relações e para seu modo de vida.
No final do dia, fazemos o que nos é possível. Jung colocou em um dos seus textos que, na jornada para nos descobrirmos, quebramos com a sociedade, pois vamos entendendo o quanto somos diferentes e nem sempre seremos aceitos. Mas, ao escolhermos sermos nós mesmos, ao invés de uma tela de projeção para os outros colocarem seus desejos, eventualmente fazemos o caminho de volta. Agora, mais autênticos, mais donos de nós mesmos, retornamos à sociedade para refazer nosso acordo com ela, para reinventar como vamos conviver com os outros. E, também, escolhendo quem queremos nas nossas vidas. Na conclusão do processo, não precisamos mais escolher se vamos ser felizes ou se vamos nos trair para agradar ao outro.
*Porque alguém vai gostar de cenoura preta! (piada baseada no texto: A auto-aceitação como um antídoto à padronização)
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