Esse texto foi dividido em dois para facilitar sua leitura.
Um assunto difícil de ser discutido em consultório é hostilidade familiar. É comum e forte as idéias de sempre respeitar a família e de que esta quer apenas o que é bom para seus membros. Porém, esses conceitos são reforçados mesmo quando uma pessoa se sente desrespeitada, manipulada ou abusada por sua família de origem. Ao colocar em palavras sua experiência, é infelizmente comum que a pessoa seja silenciada, ouvindo que é a família que tem razão e até mesmo dando a entender que quem reclamou que é ingrato, mimado ou louco. O paciente sente dificuldade em se ouvir e respeitar seus sentimentos, reproduzindo o discurso da família (e, em maior grau, da sociedade) e, no final das contas, dando razão às pessoas que a fazem sofrer. Isso é especialmente complicado quando a família tem membros controladores, amargos ou com dinâmicas de abuso psicológico.
O que essa idéia de amor familiar acaba por ignorar é que nem relações humanas nem seres humanos são capazes de serem perfeitos. Lidar com o outro é difícil e isso não se torna mais fácil porque alguém decidiu ter uma família. Aprender a viver com diferenças é tão complicado quanto aprender a ouvir o outro; desafio esse que fica mais difícil quando estamos falando de bebês e crianças, que tem uma forma própria de expressão. Uma criança pode não ser capaz de dizer que não quer visitar a vovó porque a vovó gosta de zombar dela, mas a criança pode chorar para não ir, não querer beijar nem abraçar a vovó e, quem sabe, se for uma criança muito pequena, pode tentar bater na vovó. Mas como esse tipo de comportamento não é aceito, é mais comum a criança ouvir um grito de ‘Não! Não faça isso, é feio!” e depois um “Mas você não quer beijar a vovó? Ela vai ficar triste, você não quer deixar ela triste, né?'“. Se dissermos ‘não’ sem tentarmos entender o que aconteceu, estaremos, talvez até sem querer, ensinando a criança que os seus limites não importam, mas agradar aos outros e fazer o que eles querem, sim.
Outro ponto importante que essa idéia ignora é que a sociedade ocidental tem o hábito de se organizar através de relações de poder e de gênero. Papai é quem trabalha e manda na casa, mamãe pode até trabalhar mas é ela quem cuida da casa e dos filhos. Os filhos precisam ser bonzinhos e bem-educados, o que muitas vezes se confunde com serem submissos.
A submissão tem um efeito venenoso em quem é obrigado a fazer esse papel. Não se pode expressar suas idéias, fantasias, desejos, sonhos, nem nada que pareça com um desafio a quem está por cima. É possível que não seja necessário contrariar esse outro: a mais simples expressão já indica que a pessoa submissa é um ser humano e não um objeto manipulável, o que pode ser muito mal visto pelo controlador. Se não somos capazes de expressar quem somos e como vivemos o mundo, não conseguimos estar inteiro nas relações e temos dificuldade de explorar quem somos de verdade. Nenhuma relação pode ter troca e amizade legitimas numa relação de poder. Uma relação de via de mão dupla só existe realmente quando ambas as pessoas estão no mesmo patamar; quando alguém está por cima, isso não é possível. Troca-se o amor legítimo por comandos, medo e agressão.
Voltando à idéa da criança sendo repreendida sem que se entenda o contexto, falei que isso pode vir de um uma cultura familiar (e social): a de que os limites pessoais não são importantes. Vivemos numa cultura na qual manipular e agredir uma criança é colocado como aceitável e, por vezes, necessário. Isso perpetua diversas mensagens, entre elas: (1) agressões são uma forma possível e aceitável de resolver conflitos; (2) conversas são úteis para expor o seu ponto de vista, não realmente para discutir pontos de vista diferentes, o que envolveria ouvir o outro; (3) desrespeitar o outro é aceitável quando ele se mostra diferente de você. Esses exemplos tendem a mostrar comportamentos que subjulgam o outro. Algum exemplos que mostram comportamentos que são submissos ao outro são: (1) as necessidades, desejos e fantasias dos outros são mais importantes que as suas; (2) não se pode dizer ‘não’ pois o outro não pode ser frustrado (mas você pode e, se a situação pedir, deve); (3) você é egoísta se não cede sempre ao outro; (4) se o outro for frustrado, você será humilhado, agredido ou perderá o amor desse outro. Essas mensagens demonstram comportamentos que podem ser vivimos por uma mesma pessoa. Ao estar acostumada à lógica de poder das relações, é comum que uma pessoa por vezes tenha comportamentos que sujulgam e por vezes tomar o lugar do subjulgado. Porém, há casos onde a pessoa se mantém, na maioria das vezes, no lugar do submisso, o que abre espaço para uma auto-estima baixa e o auto-ódio, além de torna-la mais propensa à aceitar uma relação de abuso. Afinal de contas, nada do que o abusador diz vai contra o que o submisso ouviu a vida toda.
Na próxima semana, postarei a parte dois do texto.
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